A Psicologia da Aprendizagem pode ser historicamente resumida em dois grandes momentos. Numa primeira etapa, vemos surgir a Psicometria e a Abordagem Comportamental, que a consideram apenas a partir dos seus resultados ou produtos, na medida em que recorrem a conceitos como inteligência, habilidade, aptidão, competência, capacidade. Esses conceitos referem-se apenas a diferenças de graus em desempenho e quando consideram as dificuldades de aprendizagem, termo preferido por eles para se referirem aos insucessos dos escolares, essas são tratadas a partir de deficiências nos conceitos referidos, como déficit de inteligência ou de qualquer outra habilidade. Tomando a aprendizagem apenas como aquisição de novos comportamentos, esta concepção consegue apenas identificar o nível de desempenho do aprendiz e de relacioná-lo às variáveis ou fatores que poderiam aumentá-lo ou diminuí-lo.
Num segundo momento, surgiram as concepções referidas como cognitivistas, especialmente a partir do questionamento da Psicometria e do uso dos testes. Piaget (1896-1974, foto ao lado), que iniciara seus estudos de psicologia com Binet, o construtor do primeiro teste infantil de inteligência, questionou o conceito de erro, e a partir disto não apenas se desligou daquela concepção, como desenvolveu uma teoria sobre a inteligência que busca compreendê-la como um processo e não apenas quantificar os seus resultados. Também Vygotsky, ao formular a sua concepção de zona de desenvolvimento proximal, inicia por uma crítica ao uso dos testes em educação, por considerar que eles só conseguem captar os “frutos”, quando o mais importante para a aprendizagem é compreender os “brotos”, os processos nos quais ela se dá. Na sequência, surgiram muitos outros cognitivistas, como, por exemplo, David Ausubel, entre tantos outros.
No entanto, embora tratem de processos, os cognitivistas consideram apenas percursos, estágios ou caminhos fixos para o desenvolvimento e, portanto, para a aprendizagem. Para eles aprender significa assimilar novos objetos aos antigos esquemas, ou realizar novos ajustes nestes esquemas quando a assimilação do objeto não é possível, numa concepção piagetiana; ou numa perspectiva vygotskiana, apropriar-se através da mediação social de conceitos historicamente construídos, num processo de internalização conduzido pela linguagem. Em ambos, os processos são sempre pré-determinados, exigem aquisições anteriores, daí a ideia de estágios ou etapas.
Mas, o que os cognitivistas não mostram é como a aprendizagem pode ser provocada, ou seja, o que é que de fato a produz, como ela pode ser disparada. Eles parecem acreditar que o aprendiz que esteja no estágio propício, que tenha realizado as aquisições prévias, estará sempre intrinsecamente motivado a aprender. Assim, se para os comportamentalistas se tratava de motivar o aprendiz, a partir de estímulos reforçadores externos; para os cognitivistas se trata de criar as condições anteriores que propiciem a manifestação de uma motivação intrínseca e necessária que sempre ocorre em quem está em condições de aprender. Ambos não tratam do que pode em uma situação específica “disparar” a aprendizagem. Ao falarem em motivação e elencar fatores ou aspectos que os constituem, assumem o dualismo cartesiano, separando o cognitivo do afetivo, situando a motivação como um termo que se abstrai do afeto e o utiliza para explicar os graus de envolvimento com o cognitivo, mas sem deixar que os dois, afeto e cognição, participem de um mesmo processo, se interpenetrem.
Pensar a produção desejante na aprendizagem significa superar esse dualismo, a cognição não ocorre separada do afeto, mas, pelo contrário, impulsionada por ele, num processo que é único e indissociável, afeto no início e cognição no final. A cognição é o resultado de um envolvimento afetivo, ou não é nada, apenas uma simples recognição, reconhecimento de uma cognição antiga, já feita e utilizada para evitar que o processo de produção cognitiva se inicie. Esta é a concepção que Gilles Deleuze apresenta em Diferença e Repetição.
Conceber o problema da aprendizagem como uma dificuldade do aprendiz, leva a propor que as soluções passam por intervenções junto a eles, gerando um atendimento individualizado e clínico, como se a solução fosse ter uma clínica psicológica na escola. Se isto é evidente no comportamentalismo não o é menos no cognitivismo. Numa outra frente, ambos propõem ações junto aos professores, no sentido de treiná-los num processo de mediação que favoreça a aprendizagem. Na abordagem comportamentalista ainda é possível trabalhar com o professor, mas modificando seu comportamento por meio de contingências exteriores. De qualquer modo, os dois modelos sempre levam a uma atribuição de responsabilidades ora ao aluno ora ao professor.
Conceber a aprendizagem como processo de produção desejante, pensar o desejo de aprender, é acima de tudo conceber a aprendizagem e suas dificuldades como anteriores tanto à concepção de aluno como a de professor. Para Deleuze, o desejo se faz entre, é intermezzo, e principalmente antes que os papéis ou territórios sociais possam ser nomeados ou identificados. Não se trata de responsabilizar os alunos ou professores, para depois tratá-los, mas criar o ambiente ou o contexto, a condição indispensável ao início do processo de produção desejante da aprendizagem, em descobrir o que pode levar ao seu disparo, antes mesmo de se pensar nos dois polos, aluno e professor, que deles resultam. Professor e aluno são os lugares que nossa consciência, em suas representações recognitivas sobre o processo de produção da aprendizagem, cria para explicar os resultados obtidos no seu final. Lembrando que, como expusemos em post anterior (“Aprendizagem: Encontro com os Signos: Occursus”), o processo de produção desejante da aprendizagem se passa sempre no inconsciente.
Assim, ao recorrermos às concepções de Gilles Deleuze e sua Filosofia da Diferença e Repetição, estaremos em condições de iniciar um novo momento no estudo da Aprendizagem. Pois, Deleuze a considerou a partir de uma perspectiva que busca compreender o que seria o disparador dela, ou seja, o que significaria um desejo de aprender, independentemente de estágios internos ao indivíduo, ou de condições reforçadoras exteriores a ele. Ele pensou a aprendizagem antes mesmo que sujeito e objeto tenham se diferenciado.
Para Deleuze, um processo de aprendizagem, como também um processo de pensamento, só pode ocorrer quando forçado a isto, pois naturalmente não pensamos e não nos esforçamos para aprender, habituado que estamos à recognição ou reconhecimento dos conceitos e suas representações da realidade. Pensar ou aprender só ocorre quando há um acontecimento que força estes processos. Este acontecimento é referido como um “problema”, algo que angustia, que afecta, que incomoda, que perturba o aprendiz. O exemplo preferido para ilustrar a dramaticidade e a veracidade desta concepção é aquele do indivíduo enciumado. Longe do problema, só ocorre recognições ou reconhecimentos.
Sendo ainda mais específico, Deleuze explica que para que o problema ocorra é preciso que um “signo”, entendido como um aspecto singular de uma ideia objetivada, que se opõe à representação, pois pode nos afetar, é da ordem dos afetos, dos sentimentos, precisa se conectar com partes notáveis do corpo do aprendiz. Então, podemos dizer que a aprendizagem só é disparada quando uma conexão entre partes notáveis do aprendiz, do seu corpo e de sua mente, se faz com pontos singulares de uma ideia objetivada, criando um “campo problemático”. Este é o ponto de partida, o disparador da aprendizagem, algo da ordem dos afectos, algo afetivo. Portanto, o que inicia a aprendizagem é a afetividade, que seria o mesmo que dizer que os aspectos afetivos são mais importantes para uma aprendizagem ocorrer do que os pré-requisitos intelectuais.
Só há aprendizagem quando há desejo de aprender, assim como tudo no homem. E o desejo não é conscientemente provocado, como se acredita, por exemplo, ao se defender teorias motivacionais da aprendizagem. O desejo de aprender, como o desejo sexual, só pode ser favorecido, facilitado, intercedido, mas jamais produzido, conscientemente. Ele se refere a um processo que se inicia inconscientemente, mas que, ao mobilizar o indivíduo, o mantém preso de uma forma intensa. Além disso, ele se passa sempre entre partes notáveis do indivíduo e pontos singulares de aspectos do seu meio, cuja conexão constitui o fundamento do próprio desejo. Portanto, assim como na sexualidade tudo se inicia pela afetividade, a afecção de um “signo” sobre nós, que origina um “campo problemático”, cuja resposta advém de uma seleção e destaque das partes do nosso corpo que se prestarão à conexão, produzindo uma resposta ao problema que, uma vez encontrada, será considerada como desempenho cognitivo. Portanto, para além do dualismo cartesiano pensamento-emoção, inteligência-afetividade, a referência àquilo que no dualismo se considera como afeto corresponde agora ao princípio disparador do processo, seu gatilho, enquanto o intelecto só pode ser referido no final, quando se avalia o produto que resultou dele.
Como expõe Deleuze, no Anti-Édipo, com Guattari, a produção desejante se desenvolve em três momentos: produção da produção: síntese conectiva, da produção do registro: síntese disjuntiva e da produção do consumo: síntese conjuntiva. A conexão ou síntese conectiva, como disparador do processo, seria o que se chama de aspecto afetivo, de afectar, tocar, afetar; enquanto a cognição é que só pode ser construído como representação no final, na síntese conjuntiva, quando a consciência do processo passar a representá-lo para si mesma, então como o processo já está no fim, ela só pode representar o seu resultado. Não será por outro isso que teorizar apenas sobre os resultados, como fazem os comportamentalistas, é tão atrativo aos atos de consciência de senso comum? Essa poderia ser a justificativa do sucesso desta abordagem entre o público em geral? Falar de resultados do processo é algo que já conseguiam por si mesmos. Não será isso que torna essa “Psicologia” tão mais familiar? Mas, em nenhuma outra área do conhecimento dito científico, explicar se resume a tratar dos resultados, relacionando-os com fatores prévios, evitando penetrar nas “entranhas” do processo.
A conexão é também referida, em obras posteriores de Deleuze com Guattari, como Agenciamento. E então, vai detalhar que um Agenciamento se compõe de dois eixos, um horizontal e outro vertical. No eixo horizontal um Agenciamento é, de um lado, conteúdo, quer dizer, misturas de corpos reagindo uns sobre os outros, ações e paixões, para o qual ele reserva o nome de agenciamento maquínico. O outro aspecto do eixo horizontal é aquele da expressão, transformações incorpóreas atribuídas aos corpos, de atos e de enunciados, referido como agenciamento coletivo de enunciação. Em outras palavras, o desejo ou agenciamento se compõe de conexões entre aspectos materiais, entre partes de um corpo com partes de outro, por um lado, e de outro, por “descobertas”, “nomeações”, enunciações referentes às misturas ou conexões ocorridas. Exemplificando, o indivíduo em desejo sente que partes de si mesmo são estimuladas ou conectadas com partes do outro, e ao mesmo tempo busca e cria nomes ou palavras para isto. Por exemplo, “isto é paixão”, “isto é desejo”, “isto é amor”, “isto é tesão”, “eureka! descobri a resposta” etc. Pois o indivíduo, uma vez que vive em um ambiente social fundamentado na linguagem, precisa nomear o desejo, integrá-lo à sua consciência.
No eixo vertical orientado, o agenciamento possui lados territorializados ou reterritorializados que o estabilizam e, ao mesmo tempo, pontas de desterritorialização que o impelem. Os lados territorializados e reterritorializados mantêm o pensamento preso na recognição, daí a sua estabilização, enquanto as pontas de desterritorialização fazem a recognição e a representação fugirem, são linhas de fugas, devires.
O agenciamento é um detalhamento do processo que se inicia na conexão que origina o campo problemático disparador da aprendizagem, é sua máquina, seu maquinismo. Deleuze cita como exemplo a aprendizagem de nadar no mar, na qual as ondas se constituem no aspecto singular da ideia objetiva de mar, os signos, e é com elas que as partes notáveis do corpo do nadador (peito, braços, pernas e cabeça) devem se conectar. Esta conexão cria um campo problemático, como encadear os movimentos dos braços, pernas, peito e cabeça para que funcionem em sincronia com os movimentos das ondas do mar. Aprender a nadar no mar é encontrar respostas para este problema.
Passando agora a uma aprendizagem tipicamente escolar, a aprendizagem de leitura e escrita exige uma conexão entre os pontos notáveis do corpo (audição, cérebro e mão) com partes notáveis das palavras, enquanto ideia objetiva, os signos da leitura e escrita. Inicialmente esse campo problemático precisa surgir no aprendiz, ou seja, ele tem que se dar conta, ser afectado pelos signos, e descobrir que precisa conectar, com esses signos, as partes do som do nome de coisas que ele ouve, os riscos e rabiscos que se convencionou como grafismos ou desenho deles, sua representação. Neste sentido, ele precisa desterritorializar o desenho como desenho da figura dos objetos, para reterritorializá-lo como grafismo, desenho dos sons dos nomes destes objetos. Escrever e desenhar são atividades psicomotoras de natureza bastante similares, daí tanta dificuldade e confusão no início da alfabetização, mas que envolvem signos muito diferentes. Os signos do desenho comum são visuais, se referem à figura dos objetos; enquanto os signos da escrita são auditivos, se referem aos sons dos nomes que se dão aos objetos, fonemas. Vemos então que as partes notáveis do corpo envolvidas no desenho, especialmente aquelas que captam os signos, são muito diferentes, no desenho é a visão, e na escrita a audição; ao mesmo tempo em que os signos são outros, figuras para o desenho comum e sons, fonemas, para a leitura e escrita.
Nesta concepção, promover ou facilitar a ocorrência do desejo de aprender é situar o aprendiz num ambiente no qual a aproximação entre os signos corretos e os pontos notáveis do corpo correspondentes, em relação a uma determinada aprendizagem, se torne favorável ou quase que obrigatória. Pois, assim como para que o desejo sexual entre um rapaz e uma moça aconteça é preciso acima de tudo que eles se encontrem em um ambiente favorável, como o de uma balada, uma rave, também para que o desejo de aprender ocorra é preciso criar um “clima”, um ambiente favorável à sua ocorrência. Nos nossos dois exemplos, aprender a nadar só pode ser provocado, favorecido ou disparado levando o aprendiz ao mar, o ambiente propício, e colocando-lhe o desafio de enfrentar as ondas. Ao mesmo tempo, disparar o desejo de aprender a ler e escrever só pode ser possível num contexto em que os sons de palavras e suas partes sejam realçados e destacados em atividades, por exemplo, com música. Como na experiência de Antônio Leal, publicada no livro Fala Maria Favela, da década de 1970, no qual ele entrou com um bumbo na sala de alunos que não conseguiam aprender a ler e escrever, após diversos anos de escolaridade, na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, e com hexagramas desenvolveu um processo de registro e estimulação de reconhecimento de partes dos sons tocados no tambor, depois nas palmas e por últimos na fala de sílabas e palavras, os quais eram reproduzidos inicialmente por linhas contínuas ou interrompidas e posteriormente por desenho de sílabas, grafemas.
O “intercessor do signo”, como, com Deleuze, podemos nos referir ao território docente, deveria buscar situações ou contextos nos quais os agenciamentos ou conexões indispensáveis para o disparar dos processos de aprendizagem, aos quais se esteja dedicando, possam ocorrer. Algo da ordem de organizar “festas” ou “baladas” nas quais as partes notáveis dos alunos se “enamorem” dos pontos singulares das ideias objetivadas, ou dos signos. Já que é a conexão com eles que constitui o desejo de aprender e que tudo se passa a nível inconsciente, não pode ser ensinado pelo apelo à consciência.
Para finalizar, podemos ainda perceber uma terceira diferença entre uma concepção do desejo de aprender e as duas outras concepções de aprendizagem, a comportamentalista e a cognitivista. Nessas duas concepções, derivar delas as implicações práticas para a aprendizagem escolar, implica em supor carências, faltas ou deficiências no aluno. No caso do comportamentalismo, são deficiências em habilidades, capacidades ou inteligência; no caso do cognitivismo, são deficiências no desenvolvimento, na falta de pré-requisitos, ou ainda, uma deficiência no modo de realizar as mediações sociais. Ao contrário, na concepção de um desejo de aprender, se trata de uma Afirmação. Para ela, não existe nenhuma falta no aprendiz, muito menos no professor. Trata-se de descobrir o campo problemático que precisa ser Afirmado, enfatizado. Afirmar, enfatizar, sublinhar, favorecer, facilitar, são verbos positivos, resultado de uma crença numa concepção afirmativa do Devir, do processo, do Desejo. Pois, como insiste Deleuze e Guattari, ao desejo nada falta.
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