Em nosso post anterior expusemos a Intolerância que mata, aquela referente à Diversidade e à Diferença. Agora trata de assumirmos o desafio de refletirmos sobre estratégias para enfrentá-la. Se na exposição dos fundamentos da intolerância assassina nos baseamos no terceiro capítulo de Gilles Deleuze (1988/1968), em Diferença e Repetição, então será ele também que nos irá propiciar as “armas” para tal combate.
Para começar, façamos um sumário dos oito postulados que compreendem a Imagem Dogmática do Pensamento, expostos com mais detalhes no post anterior. O primeiro postulado se refere ao Princípio e se realiza na suposição de que o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, que há boa vontade no pensador e uma natureza reta do pensamento. O segundo postulado é o do Ideal e assume o Senso Comum como a norma de identidade, partindo da suposição de um objeto qualquer visto, lembrado, imaginado, pensado como o mesmo, ainda que cada faculdade tenha os seus dados particulares sobre ele, seu estilo e seus atos particulares em relação ao dado; cabendo a tarefa desta partilha da identidade ao Bom Senso. O terceiro postulado é o que trata do Modelo e o assume como a Recognição, expressa no exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto o mesmo. O quarto postulado trata do Elemento e encontra na Representação, como captura da Diferença, a sua realização, seja por meio da Identidade, na forma do mesmo; da Oposição, na determinação do conceito; da Analogia, como meio para o juízo; ou ainda da Semelhança, na continuidade da percepção. O quinto postulado se refere ao Negativo, o que não está em acordo com o que a Imagem Dogmática propõe, que encontra no Erro o lugar de todas as desventuras do pensamento, recusando a se ocupar de singularidades tais como a loucura, a besteira, a maldade. O sexto postulado se refere à Forma Lógica da Proposição, assumindo o verdadeiro e o falso em relação à designação, se perde na afirmação do sentido como um duplo neutralizado da proposição ou na sua reduplicação indefinida, desconsiderando que o sentido está no Problema, entendido no seu significado mais amplo, como o complexo que inclui o conjunto de problemas e de questões; sendo em relação a este complexo que as proposições irão servir de elementos de resposta e de casos de solução. O sétimo postulado se ocupa da Modalidade que se desenvolve na busca das soluções ou respostas aos problemas, sem assumir que o problema é o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético no verdadeiro. O oitavo postulado se refere ao Resultado e assume o Saber como o importante, submetendo a Aprendizagem a ele.
Para enfrentarmos a Intolerância Assassina, é preciso desenvolvermos estratégias de superação da Imagem Dogmática do Pensamento, nos elevarmos ao Pensamento sem Imagem. Na realização deste objetivo, destaquemos o quarto postulado, referente ao Elemento de tal Imagem, ou seja, a Representação, do qual decorre o Modelo, a Recognição. Se conseguirmos desconstituir o elemento, não haverá modelo que se derive dele, ou seja, sem a representação não há o quê reconhecer. Mas, o que se oporia à representação? Que “arma” se pode usar contra ela?
É na História da Filosofia que iremos encontrar a resposta a tal questão. Permitam-nos uma rápida digressão sobre Ontologia, iniciando pela oposição entre Ser e Devir. Antes de Sócrates, Platão ou Aristóteles é possível diferenciar duas correntes de pensamentos em relação aos pressupostos sobre o Ser. Foi Parmênides (515-460 a.C.) quem primeiro defendeu que o Ser é aquilo que é, sempre, imutável, estático, em sua essência, que se incorpora na individualidade divina do Ser-Absoluto, que envolve todo o Universo. Oposto a ele, Heráclito (540-470 a.C.) defendia a tese de que tudo flui e nada permanece, o Ser não é, apenas dá forma e nunca se mantém fixo, daí seu célebre aforisma de que não se pode pisar duas vezes no mesmo rio, pois além de que a cada vez são outras águas, também você será outro. A corrente de pensamento que deriva de Parmênides, em geral, é classificada como Ontologia, ou Ontologia Tradicional, enquanto Heráclito viria a influenciar uma outra corrente, só muito recentemente referida como Ontologia do Devir (Vasconcellos, 2005), na qual podemos incluir o Estoicismo Antigo, Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson, Heidegger e Deleuze.
Mas, o mais importante para os nossos propósitos é compreender o Elemento com o qual os filósofos constroem suas Imagens de Pensamento. Se considerarmos os representantes da Ontologia Tradicional, tais como, Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel, por exemplo, vemos que seu Elemento teórico fundamental é a representação. Para compreender tal escolha é suficiente lembrarmos que nesta Ontologia, em suas diversas variações, supõem-se sempre algum tipo de dualismo da realidade. Comprometidas com a Moral, como as acusa Nietzsche, necessitam separar o Espírito da Matéria, a Forma da Essência, o Transcendental do Imanente etc.
Além disso, diante do movimento, do Devir, da produção da Diferença, natureza última do real, conceber a existência do Ser, como requer a Ontologia Tradicional, exige que se detenha o movimento, o devir e a diferença, capturando-os em um conceito, uma representação deles. Deleuze (1988/1968), ao tratar da Diferença em si mesma, nos expõe às diversas desventuras nas quais a Diferença é capturada pela Representação, seja na Identidade, na Oposição, na Analogia ou na Semelhança, ao longo da História da Filosofia. Lembrando sempre, citando Nietzsche, que se trata de prestar serviço à Moral, no resgate das instituições, do Estado, da família, do indivíduo e, especialmente, da Igreja.
No século XVIII, David Hume (1711-1776) apresentou a mais dura crítica à representação ao mostrar o caráter arbitrário das crenças mais fundamentais construídas pelo homem, não apenas no senso comum, como na Filosofia e até na Ciência. A clareza da exposição lógica realizada, despertou Immanuel Kant (1724-1804), como ele mesmo declara, de seu sono metafísico, buscando construir um fundamento para uma nova Crítica que justificasse o recurso à representação como condição única de possibilidade de acesso ao real, uma vez que, como buscou demonstrar, a coisa em si é inacessível à Razão e ao conhecimento humano. Posteriormente, Schopenhauer (1788-1860) travou o mais explícito combate contra a representação em sua obra “O Mundo como Vontade e Representação”, no qual defende a tese de que a “coisa em si”, acessível, corresponde à “vontade”, originando um outra Ontologia que se contrapõe à Crítica de Kant. Mas, devemos a Friedrich Nietzsche (1844-1900) o mais eficaz combate à representação empunhando a “vontade de potência” por ele concebida.
Na França, Henri Bergson (1856-1941), ao desenvolver o conceito de “duração”, concebeu-a como expressão da “diferença de si”, a qual também refere como “intensidade”. Deleuze (1988/1968), apoiando-se nas críticas de Bergson e Nietzsche, completou com a “estocada final” mostrando que a Imagem Dogmática do Pensamento tem como Elemento a representação e que um Pensamento Sem Imagem só ocorreria com a abertura ao real em si, à intensidade, diferença de si ou vontade de potência.
Coube a Deleuze (1988/1968) ainda mostrar que se queremos desconstituir a representação, o elemento fundamental da Imagem Dogmática do Pensamento, temos que romper com a noção de identidade do objeto ou coisa que temos diante de nós, duvidar do pensamento, em sua retidão de natureza e desacreditar da boa vontade do pensador. Rompido o compromisso com o senso comum e o bom senso, desacreditado do pensamento em sua Imagem Dogmática, recusado a fundamentação no Elemento representação, acederemos à diferença de si, à intensidade e à vontade de potência.
Tomemos como exemplo uma situação de supervisão profissional educacional ou clínica. Em geral, quando o supervisor se reúne com o profissional ou o grupo de profissionais, o trabalho se inicia com o supervisionando apresentando um caso em atendimento, por meio de relato verbal. Assim, a interação se faz, pelo menos de início, no plano de representações verbais, mas mesmo que se passe a um plano de realidade suplementar, como no caso da dramatização psicodramática, esta decorre e concretiza o que foi relatado, permanecendo como representação da situação vivida. Como então sair deste círculo vicioso da representação?
Mais uma vez, Deleuze (1988/1968) nos oferece a resposta ao expor a Imagem Dogmática do Pensamento em seu sétimo postulado, da Modalidade, no qual se admite que o pensamento se desenvolve na busca das soluções ou resposta aos problemas. Após questionar tal suposição, mostra que o Problema é, de fato, o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético no verdadeiro, entendendo por diferencial ser produtor da diferença de si e genético o disparador de intensidade. Pensar o Problema diferencial e genético, imanente, implícito no real, é o mesmo que exercitar um Pensamento Sem Imagem.
Recorrendo a este aspecto, para se desconstituir as representações sobre a situação vivida e trazida pelo supervisionando(a), caberá proceder à busca do Problema imanente, diferencial e genético, em lugar de aceitar as representações em um formato interrogativo e partir para a busca de resposta ou soluções. Neste sentido, Deleuze (1988/1968) nos explica que o Problema está em relação com os signos, que “dão problemas” e que se desenvolvem num campo simbólico imanente. Portanto, trata-se sempre de buscar pelos “signos” e o “campo problemático”, que deles se originam. A constituição do campo problemático implica suas próprias soluções, ou como diz Deleuze, “cada problema tem a solução que merece” ou ainda “uma vez constituído, o campo problemático revela suas soluções”, sempre múltiplas, dada sua natureza diferencial, e mutante, pelo seu caráter genético. Este pode ser considerado o aspecto mais explícito de sua Ontologia do Devir.
Consideremos uma situação prática de sala de aula, um aluno que não está conseguindo aprender a ler. Sua professora, que afirma já ter tentado todos os recursos possíveis, mas que não consegue fazê-lo avançar na aprendizagem, procura um supervisor que a auxilie. Se o supervisor se deixa capturar pelo relatos, representações do vivido, buscando considerar cada tentativa como uma resposta ou solução às dificuldades do aluno apontadas pela professora em suas representações, se perderá numa infinidade de possibilidades de sugestões e orientações e, para escolher um caminho seguro, terá que recorrer a um determinado referencial teórico sobre métodos e técnicas de alfabetização. Mas, a cada orientação, debate ou análise, realizadas a partir das representações da professora sobre o problema do aluno, mais e mais ele se distancia do Problema imanente, diferencial e genético, sem evidenciar suas soluções possíveis. Por caminhos que nem sempre conseguirá compreender, poderá até acertar, depois de muitas tentativas, mas o desgaste, o tempo e, principalmente, a dificuldade de compreensão do que foi que realmente estava problematizando a aprendizagem depõem contra tal forma de supervisão.
No entanto, se em lugar de se deixar capturar pela representações da professora, o supervisor trabalha com ela no sentido de identificar os “signos” e o “campo problemático” que eles originam, situando-os nos territórios existenciais aluno, as soluções surgirão por si mesma, pois os signos portam o Problema, com seu campo problemático, que implicam suas soluções, de modo imanente.
Na situação de alfabetização, que é a do nosso exemplo, sabemos já que os signos aos quais o alfabetizando deve estar atento são os signos sonoros das palavras, sílabas ou letras, aos quais ele deve fazer corresponder desenhos respectivos, arbitrários, mas definidos, descobrir qual grafema corresponde a qual fonema. Este é o Problema imanente, diferencial e genético, a partir dele, conforme o contexto cultural em que esteja inserido, o aprendiz pode se apropriar das soluções, o alfabeto, as regras de composição das palavras etc, como se cada língua escrita apresentasse diferentes alternativas de soluções, coerente com seu contexto de origem. Todo um mundo de possíveis se descortina para ele, a partir da colocação adequada deste Problema.
Mais especificamente ainda, a professora precisa entender que o Problema está em colocar a possibilidade de cada fonema corresponder a um único grafema, e apenas a ele, não importa qual seja o fonema, em qual língua ele se coloque. A partir daí, ela deve se voltar para os territórios existenciais daquele aluno, contextualizar historicamente suas experiências com problemas similares, já conhecidos dele, por exemplo, na música, cada “nota musical” tem um desenho ou representação correspondente, originando os sistemas de notações musicais, que são também grafemas de sons, agora produzidos por um instrumento musical ou pela voz, durante o canto ou sofejo. Uma pré-alfabetização que iniciasse as crianças em notação musical, facilitaria muito o processo de alfabetização, por prepará-las num campo problemático análogo àquele que encontrarão na alfabetização. Infelizmente, há muito pouca ênfase na iniciação musical em nossas pré-escolas. Além disso, muitas vezes, por desconhecimento do Problema imanente, diferencial e genético, as professoras sobrecarregam seus alunos com exercícios que o misturam com outros campos problemáticos, por exemplo, a cópia, que se trata de reconhecer e reproduzir signos visuais (a escrita na lousa), quando o Problema da alfabetização é grafar signos sonoros falados. As cartilhas com suas figuras, desenhos e ilustrações explicativas ofuscam os signos sonoros nos visuais. O efeito colateral desta confusão de signos é a produção de excelentes “copistas” que não leem.
Um outro modo de iniciação adequada à alfabetização, reconhecido pelos socioconstrutivistas, é a grafia de logos e marcas comerciais, como Coca-Cola, Pepsi-Cola etc, com os quais as crianças, ainda na pré-alfabetização já estão familiarizadas, por colocarem o Problema imanente, diferencial e genético próprio da alfabetização. Não se trata de aderir a um Método, nem mesmo ao Fônico, nem seguir nenhuma cartilha, mas de levar o aprendiz a defrontar-se com os signos da alfabetização, seu campo problemático, seu Problema imanente, diferencial e genético.
Na área clínica, quanto tempo se perde “interpretando” ou “analisando” as representações verbais trazidas pelos supervisionandos, a partir de referenciais teóricos prévios, se distanciando mais e mais do Problema imanente, diferencial e genético, que subjaz, aqui e agora, às representações e aos relatos. Mas, o mais importante é que ao se recusar as representações, se recusa também as recognições, sem as quais a intolerância à diversidade e à diferença se tornam impossíveis.
Devemos a Zourabichvili (2016/1994) a proposta de “escavar uma profundidade na representação”, outro modo de superá-la. Uma vez admitido, com Deleuze, que o signo implica seu próprio sentido, que o sentido está sempre implicado no signo, que lhe é imanente, que o sentido é o avesso do signo, o autor afirma que “se há signo, se uma profundidade se escava na exterioridade relativa e sem mistério da representação, é justamente porque um elemento heterogêneo surge: um outro ponto de vista” (p. 66). O signo compreende sempre a heterogeneidade, “é sempre aquele de Outrem, a expressão - sempre aquela de um ‘mundo possível’ envolvido, virtual, incompossível como o meu, mas que deviria meu se, de minha parte, eu deviesse outro ao ocupar o novo ponto de vista” (idem, ibidem). Mas, o ponto de vista outro é ainda imanente ao Problema, não o transcende em nada, ainda que o enfoque por outro ângulo. Portanto, esta operação não corresponde à “interpretação”, por exemplo, que busca significações e significados a partir de um referencial exterior, ao se referir a uma outra dimensão que transcende a imanência do Problema.
Ainda segundo Zourabichvili (2016/1994), o signo se apresenta a nós sempre numa representação, seja de significações explícitas ou de objetos reconhecidos, porém está sempre se referindo a algo que não está na representação. Por isso, implica sempre o heterogêneo ou um outro ponto de vista, o que impede que ele possa ser reconhecido ou objeto de recognição. O sentido ou a explicação de um signo “consiste em estabelecer a comunicação entre dois pontos de vista, planos ou dimensões heterogêneos. Só há sentido nos interstícios da representação, no hiato dos pontos de vista. O sentido é divergência, dissonância, disjunção.” (idem, pp. 66-67). Assim, se em lugar de prosseguirmos com as representações, buscamos os signos que escavamos sob elas, não apenas as desconstruimos, como também interditamos qualquer tipo de recognição. Como ser intolerante, preconceituoso, racista, sexista, colonialista, supremacista, fascista sem o apoio de uma recognição, de um reconhecimento conceitual e identitário?
Diante das “queixas”, “problemas” ou “sintomas” trazidos por supervisionandos ou clientes, escavar uma profundidade, descobrir o campo problemático, ou seja, a relação entre os signos e as ações dos afetados por eles, são as metas que perseguimos em nossas supervisões profissionais. Tais práticas se constituem em “armas” no combate à Intolerância à Diferença e à diversidade de todo tipo, a partir da promoção de um Pensamento sem Imagem.
A supervisão profissional é apenas um exemplo, em todo e qualquer processo educativo ou clínico, buscar sempre o Problema imanente, diferencial e genético, recorrer ao Pensamento sem Imagem ou escavar uma profundidade na representação é o modo melhor e mais eficaz de prevenir ou corrigir as intolerâncias de todo tipo.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Diferença e Repetição (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 1988 [Ed. orig. 1968].
VASCONCELLOS, J. A Ontologia do Devir de Gilles Deleuze. Kalagatos, 2(4), 137-167, 2005 [https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/5676/4598].
ZOURABICHVILI, F. Deleuze: uma Filosofia do Acontecimento. (Trad. Luiz B. Orlandi). São Paulo: Ed. 34, 2016 [Ed. orig. 1994].
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