No post “O Ser e o Seu Drama segundo Deleuze”, tivemos a oportunidade de resumir a Conferência diante da Sociedade Francesa de Filosofia, apresentada em 24 de janeiro de 1967 por Gilles Deleuze (1925-1995) e intitulada “O Método da Dramatização”. Um avant-première de sua proposta em Ontologia posteriormente desenvolvida de forma mais extensa em sua tese de doutorado: “Diferença e Repetição” (Deleuze 1968/1988), defendida junto à Sorbonne, no ano seguinte.
Em 1923, Jacob L. Moreno (1889-1974), segundo seu próprio relato (Moreno, 1946/1984), realizava atividades de Teatro Espontâneo, quando foi abordado por um escritor de peças teatrais (Jorge) que havia se casado com uma atriz (Bárbara) do grupo de Moreno e solicitava sua ajuda para lidar com os problemas conjugais que estavam enfrentando. Do trabalho com a situação, recorrendo à dramatização, Moreno chegou à criação do que, na época, denominou de Teatro Terapêutico e, posteriormente, Psicodrama.
Estes dois acontecimentos ocorreram de modo totalmente independente e sem que seus autores jamais tenham se referido um ao outro ou que seus biógrafos tenham mencionado qualquer possibilidade de influência de um pelo outro. Fica a questão: será possível estabelecer um paralelo entre as concepções de dramatização utilizadas pelos dois autores? Buscar respostas a esta questão é o objetivo deste post, para alcançá-lo destacamos seis aspectos, abordados a seguir.
O primeiro se refere aos Fundamentos Filosóficos que podemos pressupor em cada um dos dois autores. Em relação à Deleuze, suas contribuições filosóficas são, em geral, referidas como Filosofia da Diferença, que, segundo Vasconcellos (2005), pode ser classificada como uma “Ontologia do Devir”. Em nosso post anterior: “ENFRENTAR A INTOLERÂNCIA ASSASSINA: experimentações para um Pensamento Sem Imagem na supervisão educacional e clínica” tivemos oportunidade de relacioná-la com a Ontologia Tradicional e de justificar sua classificação. Deleuze expõe de forma explícita a Diferença como diferença de si e diferença de intensidade, mostrando como a partir de sua ação um processo de individuação se realiza, caracterizando o sentido que ele dá ao termo “dramatização”, mais detalhes podem ser encontrados também em nosso post “O Ser e seu Drama segundo Deleuze”.
Moreno, ainda em Viena, publicou a obra “Teatro da Espontaneidade”, em 1923 (Moreno, 1923/1984), na qual apresenta (p. 48-50) a sua contribuição mais explícita à Filosofia, ao propor uma inversão no conceito de “liberdade inteligível” de Kant, defendendo que esta não é uma “coisa em si” subjacente ao fenômeno, mas, que ela é a própria coisa em si, surgida ao final de um processo, referido como a produção do objeto bonito. Tal processo se constitui de uma primeira ordem, a do processo de separação dos objetos bonitos, a psique é projetada sobre um material inicialmente destituído de arte, por exemplo, o trabalho do escultor, do pintor, do músico etc.; uma segunda ordem, dos processo de entrega e separação dos objetos bonitos, os espíritos e os materiais, genuínos em si, são amalgamados e unidos a um organismo individual íntimo ao artista, para posteriormente serem separados de seu produtor e terem uma existência exterior própria, como acontece na composição de uma obra musical, por exemplo; na terceira ordem, a do processo de compilação sistemática e consciente dos objetos bonitos, que, apesar de possuírem no interior de seu criador uma vida própria e permanente, são amalgamados a ele, como um produto autossuficiente, autodeterminado, que não mais se separa de seu criador; na quarta ordem, do processo de espontaneidade e criatividade dos objetos bonitos, que levam à emergência deles, que unem o espírito genuíno e o material singular ao self. As três primeiras ordens, segundo o autor, caracterizam a Estética como parte da Metafísica, do “ponto de vista da coisa que é criada, da criatura", se refere “a prescrição para a experiência”, em seus vários domínios lógicos. éticos, físicos, psicológicos e sociais, que, nos termos de Kant, corresponde aos fenômenos. Já a quarta ordem corresponde ao que o autor denominou Metapraxis, a criadora da própria experiência, fora da experiência determinada, o locus do potencial do mundo, de sua criação, a coisa em si, o “númeno” e não o fenômeno. Como se a metapraxis fosse inconsciente e involuntária, mas acessível à consciência apenas em suas representações ou fenômenos, aquelas três primeiras ordens.
Desta exposição, é possível concluir que o pensamento de Moreno constitui também uma Ontologia do Devir, ainda que ele explicitamente jamais tenha se referido a isto, até por não estar fazendo filosofia. Além disso, o processo por ele descrito se aproxima em diversos aspectos da “individuação” como “dramatização do Ser” de Deleuze, apresentada na Conferência citada, o que pode ser conferida no post no qual a resenhamos (“O Ser e seu Drama segundo Deleuze”). Pode-se ainda relacionar o conceito de Metapraxis de Moreno, referido por ele como o locus do potencial do mundo, com a Virtualidade própria da concepção de “Ideia Dialética” de Deleuze, pela proximidade dos termos “potencial” e “virtual” em Filosofia.
O segundo aspecto do paralelo se refere ao Ideal transformador que se busca na produção dos autores. Para Deleuze, sua obra completa, solo e com seus diversos colaboradores, tem como meta a Afirmação da Diferença, concebida como processo de individuação do Ser, a sua dramatização, constituindo o que se poderia referir como uma dramatização ontológica, já que se refere a qualquer Ser ou coisa existente, entendendo que existir é se individuar, ser produzido ou atualizado, a partir de virtualidades, por meio do processo de individuação, ou seja, os seres ou existentes jamais estão aí, prontos, acabados, mas surgem por meio de um processo que os produz, os individua, os atualiza, a dramatização de uma “Ideia Dialética”, de uma Virtualidade.
As obras, conceitos, criações e experimentações de Moreno compõem uma Revolução Criadora, a promoção ou Afirmação da Criatividade, do caráter criativo do homem, a partir de um processo que pressupõe a Espontaneidade. Se relacionarmos a Diferença com a Criatividade, tal como eles as concebem, fica evidente que os ideais destes dois autores são muito mais próximos do que se poderia imaginar. A distinção que resta entre eles parece ser apenas de foco, uma vez que enquanto Deleuze, como filósofo, se ocupa da dramatização ontológica, o foco de Moreno, psiquiatra, é na dramatização psicológica, mas ambos são aspectos complementares de uma Filosofia da Diferença, ora apreendida em seus aspectos mais abstratos e filosóficos (Deleuze) ora em seus aspectos mais empíricos e psicológico (Moreno). Aliás, Moreno já havia dito de Bergson, intercessor de Deleuze, que: “(...) teve o mérito imortal de ter sido o primeiro a lançar a ideia da espontaneidade (...). Porém, em Bergson, esta ideia permanece no plano metafísico; o psicodrama e o sociodrama fizeram descer do céu à terra, os conceitos de espontaneidade e de criatividade” (Moreno, 1954/1972, p. 36). Que Deleuze seja bergsoniano não resta dúvida alguma, vide os artigos e livros que dedica a Bergson, além das citações e recuperações conceituais que pratica.
O terceiro aspecto que destacamos para traçar o paralelo se refere ao elemento conceitual básico ao qual os dois autores recorrem em suas concepções. Deleuze, como legítimo bergsoniano, recusa a compreensão da realidade a partir de representações, tal como propõe, por exemplo, Kant e a maioria dos filósofos modernos que o sucedem. A Filosofia da Diferença que propõe busca apreender a coisa em si, aquela mesma que para Kant é inacessível, concebendo-a como a diferença intensiva, denunciando que a representação constitui-se numa captura da diferença a partir do Mesmo, do Oposto, do Análogo e do Semelhante.
Moreno também recusa o acesso à realidade a partir da representação: ““Pode-se conceber uma atitude completamente oposta; consistiria em entrar na vida mesma, como diretor de cena, a fim de criar uma técnica que, apoiando-se no presente imediato, seguisse a direção de uma evolução espontânea e criadora, a própria direção da vida e do tempo” (Moreno, 1954/1972, p. 45). Filosoficamente se pode dizer que sua defesa é de que em lugar da “representação” deve-se acessar o real a partir de sua “apresentação”, tal como é vivido.
Em mais este aspecto, detectamos a aproximação entre Moreno e Deleuze, ambos recusando o conhecimento apenas a partir da representação, no caso de Moreno, em se tratando de realidades psicológicas, deve-se buscar o resgate do vivido, no aqui e agora de sua atualidade, investigando os processos por meio dos quais é produzido. Deleuze, na Filosofia, recusa a representação, ao defender o conhecimento para além do conceito, da recognição, do pensamento de senso comum, investigando seu processo de produção, sua atualização, sua dramatização.
O quarto aspecto segundo o qual se pode traçar o paralelo entre os dois autores se refere aos limites e alcance dos processos cognitivos, considerados na perspectiva das categorias negativas que o pensamento admite. Segundo Deleuze (1968/1988), a Imagem Dogmática do Pensamento só reconhece o Erro como sua desventura, admitindo-o como uma espécie de falha do senso comum e do bom senso, portanto tudo que se coloca no seu limite é considerado como erro de algum de seus aspectos, assim, na loucura se vê o erro de construção de uma realidade mental, na crueldade o erro de uma sociabilidade, na besteira o erro de um raciocínio. Deleuze questiona tal reducionismo ao cognitivo, que desconhece que a loucura e a crueldade, ocorrem quando o bom senso não consegue impedir que o fundo obscuro do pensamento suba à superfície, enquanto a besteira, emerge quando não se consegue impedir que o pensamento se coloque falsos problemas. Reduzir tal trindade a erros dos processos cognitivos é não reconhecer que há muito mais além do cognição, que esta advém de processos que a ultrapassam em todas as direções.
Moreno não se ocupou de estudos filosóficos sobre o Pensamento, mas admite o seu limite como sendo a insuficiência da Espontaneidade em ativar a Criatividade e, em relação à loucura, assume a posição de que as doenças mentais sejam uma criação das ciências do homem, colocando em questão suas existências naturais.
Neste aspecto também Moreno e Deleuze estão muito próximos ao rejeitarem as concepções de senso comum, bom senso ou de uma filosofia dogmática, pois para eles os limites do pensamento jamais pode ser reduzido exclusivamente ao Erro, apontando outras desventuras que lhe ocorrem, advindas de processos que o ultrapassam.
Um quinto aspecto se refere ao processo de produção do real concebido pelos dois autores. Como expusemos no post “O Ser e seu Drama segundo Deleuze”, a dramatização ontológica consiste na passagem do Virtual ao Atual a partir da ação das Intensidades. O Virtual, que ele denomina também de “Ideia Dialética”, é tão diferenciado quanto o Atual, que ele denomina de “Atualização Estética”. Assim, no Virtual temos elementos genéticos (pontos singulares) e relações diferenciais, o quais, por ação do fatores individuantes (as intensidades, ou quantidade intensivas, com seus centros de envolvimento e seus precursores sombrios), irão constituir a qualificação (elementos físicos, espécies biológicas, especialização psíquica) e a quantificação (partição física, organização biológica, organização psíquica). À distinção dos aspectos do Virtual denomina “difenciação”, enquanto à do Atual se refere como “diferençação”.
Moreno (1954/1972, p.: 53-60) propõe uma “Doutrina da Espontaneidade e Criatividade”, na qual descreve como a Espontaneidade atua como fator que ativa a Criatividade, resultando na transformação da Conserva Cultura, sobre a qual ela atua, em algo novo, ainda que posteriormente este venha a ser referido novamente como outra conserva cultural, num ciclo contínuo. Reconhece-se assim, neste ciclo a Conserva Cultura como o ponto de partida e de chegada, mas com a introdução de uma novidade, uma diferença.
Embora Moreno não tenha se detido a investigar os processos de “diferenciação” da Conserva em seu ponto de partida e os de “diferençação” em seu ponto de chegada, para usar a linguagem de Deleuze, é possível presumir que a Espontaneidade seria o fator que permitiria a “diferenciação”, enquanto a Criatividade produziria a “diferençação”. Aproximando os dois modelos, se poderia dizer que corresponde à Espontaneidade a função de revelar, evidenciar, fazer emergir as Virtualidades com seus pontos singulares e suas relações diferenciais, disponibilizando-as para a ação da Criatividade que, em correspondência a estes dois aspectos, “diferençaria” as qualidades e as quantidades atualizadas. Esta seria uma ampliação da ideia de Moreno da Espontaneidade como catalisador ou fator e da Criatividade como substância do processo de criatividade, na perspectiva da dramatização tal como concebida por Deleuze.
O último aspecto se refere às condições necessárias para a dramatização, tanto ontológica quanto psicológica. Deleuze (1968/1988) denomina “dinamismo espaciotemporais” os fatores intensivos que produzem e conduzem a individuação, pela qual do Virtual se passa ao Atual, os pontos singulares são transformados em diferençações qualitativas (elemento físico-químico, espécies biológicas, espécies psíquicas) e as relações diferenciais em diferençações quantitativas (partições, organizações biológicas, organizações psíquicas). Estes dinamismos pressupõem sempre um “campo intensivo”, fora do qual eles não se produziriam. A experiência cotidiana nos coloca diante de intensidades, mas já desenvolvidas em extensos, recobertas por qualidades. É preciso admitir, como condição de produção destas intensidades desenvolvidas, “a existência de intensidades puras envolvidas numa profundidade, num spatium intensivo que preexiste a toda qualidade como a todo extenso”. Este campo intensivo constitui o meio próprio do processo de individuação. Assim, a individuação depende da existência de um campo intensivo, que não corresponde àquele de nossa experiência cotidiana, mas que poderia ser concebido numa realidade suplementar que permitisse a manifestação das intensidades. A nível biológico este campo intensivo se manifesta no ovo ou no embrião, generalizando, Deleuze pode afirmar que “o mundo inteiro é um ovo”, pois está em processo de produção em seus campos intensivo. A nível psicológico, cita o pesadelo como exemplo de campo intensivo, já que só nele se pode viver torções, contrações, que o sonho profundo ou o despertar jamais poderiam suportar.
Moreno (1969/1995), afirma que, ao criar o Psicodrama, de fato, criou uma Realidade Suplementar, aquela da dramatização, do faz-de-conta, na qual todas as tensões, torções, contrações, dores, sofrimentos, euforias, podem ser vividas e suportadas, numa intensidade que não poderiam numa realidade cotidiana. Neste sentido, pode-se dizer que anteviu, intuiu a ideia de “campo intensivo” fundamental para o processo de produção do real, com a ativação do fator intensivo da Espontaneidade que catalisa a Criatividade.
Em relação a este último aspecto, podemos citar Deleuze (1968/1988, p. 309):
“se cabe ao pensamento explorar o virtual até o fundo de suas repetições, compete à imaginação apreender os processos de atualização do ponto de vista dessas retomadas e desses ecos. É a imaginação que atravessa os domínios, as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, coextensiva ao mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito, consciência larvar, que vai sem parar da ciência ao sonho e inversamente”.
Não foi exatamente recorrendo à imaginação que Moreno descobriu as funções psicoterapêuticas da Realidade Suplementar, da dramatização e do Psicodrama?
REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Diferença e Repetição (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 1988 [Ed. orig. 1968).
MORENO, J. L. O Teatro da Espontaneidade. 2a Edição. (Trad.: Maria Silvia Mourão Neto). São Paulo: Summus, 1984 (Trabalho original publicado em: 1947 (2a ed.) e 1923 (1a ed.)).
MORENO, J. L. Psicodrama. (Trad.: Álvaro Cabral). São Paulo: Cultrix, 1984 (Trabalho original publicado em 1946).
MORENO, J. L. Fundamentos de la Sociometría. (Trad.: J. García Bouza e Saúl Karsz). Buenos Aires, AR: Paidós, 1972 (Trabalho original publicado em 1954).
MORENO, J. L. El Psicodrama: terapia de acción y princípios de su prática. (Trad.: J. Maria Elena Zuretti). Buenos Aires, AR: Hormé, 1995 (Trabalho original publicado em 1969).
VASCONCELLOS, J. A Ontologia do Devir de Gilles Deleuze. Kalagatos, 2(4), 137-167, 2005 [https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/5676/4598].

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